16/04/2010

A Fita Vermelha

Eu tinha começado a ensinar. Era muito nova então. Quase tão nova como as meninas que eu ensinava. E tive um grande desgosto. Se recordar tudo quanto tenho vivido (já há mais de vinte anos que ensino), sei que foi o maior desgosto da minha vida de professora. Vida que muitas alegrias me tem dado. Mais alegrias que tristezas. Se vos conto este desgosto tão grande, não é para vos entristecer. Mas para vos ajudar a compreender, como só então eu pude compreender, o valor da vida. O amor da vida. O valor de um gesto de amor. O seu «preço», que dinheiro algum consegue comprar.

Eu ensinava numa escola velha, escura. Cheia do barulho da rua, dos «eléctrico» que passavam pelas calhas metálicas. Dos carros que continuamente subiam e desciam a calçada. Até das carroças com os seus pacientes cavalos. A escola era muito triste. Feia. Mas eu entrava nela, ou digo antes, em cada aula, e todo o sol estava lá dentro. Porque via aqueles rostos, trinta meninas, olhando para mim, esperando que as ensinasse.

O quê Português, francês. Hoje sei, acima de tudo, o amor da vida. Com toda a minha inexperiência. Com todos os meus erros. Porque um professor tem de aprender todos os dias. Tanto, quase tanto ou até muito mais que os alunos. Mas, desde o primeiro dia, compreendi que teria nas alunas a maior ajuda. O sol, a claridade que faltava àquela escola de paredes tristes. A musica estranha e bela que ia contrastar com os ruídos dos «eléctricos», dos automóveis da calçada onde ficava a escola. Até com o bater das patas dos cavalos que passavam de vez em quando.

Porque, mais que português e francês, havia uma bela matéria a ensinar e a aprender. Foi nessa altura que comecei mesmo a aprender essa tal matéria ou disciplina - ou antes, a ter a consciência de que a aprendia. Eu convivia com jovens (seis turmas de trinta alunas são perto de duzentas) que no principio de Outubro me era conhecido. Todas eram folhas de um longo livro por mim começado a conhecer. Não há ser humano que seja desconhecido de outro ser humano. Só é precisa a leitura.

Eu tinha agora ali perto de duzentas amigas. Todas aquelas meninas confiando em mim, esperando que as ensinasse; sorrindo, quando eu entrava, assim me ensinavam quando lhes devia. Mas um dia. Eu como aconteceu o pior. E conto-o hoje, a vós, jovens, que podem julgar-me. Julgar-me sabendo este meu erro. E evitarem, assim um erro semelhante para vós mesmos. Já era quase Primavera. Na rua não havia árvores nem flores. Só os mesmos carros com seu peso e a violência da sua velocidade. Gritos de vez em quando. Uma Primavera só no ar adivinhada. Numa turma, uma aluna faltava há dias. Era a Aurora. Morena, de grandes olhos cheios de doçura. Talvez triste. A Aurora estava doente. Num hospital da cidade, numa enfermaria. Num imenso hospital. Olhei o retratinho dela na caderneta. Retratinho de «passe», num sorriso de nevoeiro de uma modesta fotografia. Tão cheia de doçura a Aurora! Doente, do hospital tinha-me mandado saudades.

- Vou vê-la no próximo domingo - anunciei às companheiras.

E tencionava ir vê-la mesmo no próximo domingo. Mas o próximo domingo foi cheio de Sol. Sol do próprio astro, quente, luminoso. Igual e diferente, ao mesmo tempo, do sol-sorriso das meninas. E eu, a professora, ainda jovem, que gostava de Sol, fui passear. Ver mar? Campos verdes? Flores? Já nem me lembro. E da Aurora me lembraria se tivesse ido visitar. Começava a Primavera. Adiei a visita naquele próximo domingo, para outro dia, para outro próximo domingo.
Hoje sei que o amor dos outros se não adia. Aurora esperou-me toda a tarde de domingo, na sua cama branca, de ferro. Tinha posto uma fita vermelha a segurar os cabelos escuros.

Esperava-me, esperava a minha visita, cuja promessa as companheiras lhe haviam transmitido. Veio a família: mãe, pai, irmãos, amigos, as colegas.

- Estou à espera da professora ...

No dia seguinte, a doença foi mais poderosa que a sua juventude, a sua doçura, a sua esperança. A cabeça escura, sem a fita vermelha, adormeceu-lhe profundamente na almofada, talvez incómoda, do hospital. Sabemos todos já amigos que há vida e morte. Também isso temos de aprender. Não fiquem tristes por isso. Vejam como as flores nascem quase transparentes da terra, como as podemos olhar à luz do Sol, e morrem, para de novo nascerem.

Lembrem-se como de um ovo de pássaro podem sair asas que voem tão alto em dias de Primavera. E morrem, também, e todas as primaveras nascem de novo. E, sobretudo, lembrem-se do coração de cada um de nós, desta força imensa. E não adiem os vossos gestos. Procurar alguém que sofra, que precise de nós, nem sequer é um gesto generoso, deve ser um gesto natural que se não adia. Ás vezes até precisamos uns dos outros para dizermos que estamos felizes, contentes. Só para isso. Mesmo felizes precisamos dos outros.

Aurora ensinou-me para sempre esta verdade. As lágrimas que por ela chorei já não lhe deram aquela visita do próximo domingo. Nem a mim a alegria de a encontrar sorrindo, cheia de doçura, com uma fita vermelha a prender os cabelos escuros. Vermelha de sangue, como a vida. O sol. Flores vermelhas. Aurora era o seu nome. E a sua vida uma manhã apenas que, na minha distracção ou egoísmo, não tive tempo de olhar. Uma manhã com uma fita vermelha. Que lágrima nenhuma pode reflectir.

Matilde Rosa Araújo
O Sol e o Menino dos Pés Frios
Lisboa, Livros Horizonte Lda, 2001.

05/03/2010

O maravilhoso habito de "Ler, Contar e Ouvir" Historias.

Queridos amigos,

Nesta época dominada pela tecnologia, os meios audiovisuais têm exercido sobre os jovens um fascínio tal, que a reflexão e a leitura são frequentemente relegadas para um plano muito secundário. As diversões falam mais alto do que o sentido de responsabilidade, com sérios prejuízos para o futuro destes mesmos jovens; cuja ausência de referencias éticas os torna presas fáceis de uma sociedade materialista, em que não se olha a meios para se atingir determinados fins. Nestes tempos tão apressados, em que as pessoas vivem dominadas pela luta pela sobrevivência, os valores da infância do coração, da justiça e da tolerância têm sido substituídos por um materialismo crescente, que não olha a meios para atingir os seus fins.
Neste contexto de aridez, o Clube de Contadores de Histórias da Escola Secundária Daniel Faria, Baltazar, concelho de Paredes, distrito do Porto, tem tomado a iniciativa de enviar semanalmente por e-mail a todas as escolas de Portugal uma pequena história cujo tema convide à reflexão. Em virtude do interesse manifestado pelas mais diversas pessoas, decidiu o referido Clube a tornar o seu projecto extensivo a outros sectores da sociedade, algumas instituições vocacionadas para o apoio à comunidade, às comunidades portuguesas dispersas pelo mundo, bem como aos países de língua portuguesa e demais pessoas eventualmente interessadas. Convicto de que essas mesmas histórias, lidas em família, poderão contribuir para o estreitamento de laços afectivos e para a transmissão de valores fundamentais para a formação do carácter dos mais jovens, o referidos clube propõe-se enviar, todas as semanas, por e-mail, uma pequena historia, a fim de que o maior número de pessoas venha a beneficiar com a sua leitura.
E a pensar nisso, tive uma pequena ideia, já que o desejo do Clube é o de contagiar os jovens com o hábito da leitura, porque não divulgar aqui no meu blogue essa linda iniciativa.
Aqui iremos encontrar historias do referido Clube (semanalmente) e também não deixarei de expor outros contos, factos e assuntos que me interessam e desejo compartilhar.